Enquanto
o barco lentamente afundava, eu me agarrei firmemente a uma tábua de salvação que, gentilmente, a fortuna colocara ao meu alcance.
Não sei mais alguém se salvou, acho que não.
Nunca mais ouvi falar de
nenhum deles.
Comecei a dar remadas com as mãos e os pés em direção a
uma providencial ilha que conseguia
avistar. Ainda consegui pegar um dos livros que afundavam. Era uma carga
de livros que a navio transportava.
Quando cheguei a ilha, observei quem seria meu companheiro.
"O ABC da Batata". Este era o inusitado título do livro, a única coisa que ainda me restava do mundo civilizado. O resto tinha ido a pique e jazia nas profundezas do oceano sem fim.
O que faria eu de um manual sobre uma coisa que provavelmente não existia naquela afastada ilha tropical?
Mas, pelo menos companhia eu teria. O livro pode ser mais que uma fonte de informação e entretenimento. Ele pode até conversar com você, disse-me certa vez uma velha e obesa bibliotecária que passara anos convivendo com estes anjos de papel.
Antes de mais nada, teria que comer alguma coisa - foi o que pensei. Aliás, antes, beber! Beber é mais importante que comer, para sobreviver. Podemos nos conservar vivos sem comida por um mês, porém, se água, não de passamos de uma mera semana.
Observei muitos coqueiros e, melhor ainda, muitos cocos. Água e comida. Alguns animais silvestres me pareciam prováveis e apetitosas fontes de proteína.
E o livro...
O ABC da Batata passaria a ser meu principal companheiro. Sem companhia podemos perecer em pouco tempo. A solidão nos consome de dentro para fora, numa sentido inverso ao consumo que nos faz o tempo Mas, sobre o que o livro discorria? Batatas, é claro! E , em que ele poderia me ser útil? - eu me perguntava. Uma coisa óbvia - ele poderia me dar fogo. Cada uma de suas folhas arderia, se tocada pela chama, por alguns segundos fornecendo calor e luz. Era muito pouco. Preferi conservá-lo e pedia para que suas páginas ardessem um fogo diferente, se não fosse pedir demais.
Sobre a história da batata, descobri que seu cultivo começou nos Andes e que os espanhóis levaram o seu cultivo para a Espanha e, daí para os quatro cantos do mundo,
tornando-se o quarto alimento mais consumido no mundo, atrás apenas do leite, do trigo e o arroz.
Havia informações diversas sobre a reprodução, condições climáticas para o plantio, armazenamento, transporte... Havia um cem número de informações técnicas como nunca pensaria existir. Nunca pensei que houvesse tanto para se saber sobre as batatas. Uma batata é um mundo.
Havia centenas de receitas de batatas, tudo para aumentar ainda mais minha fome. Batata frita, batata receheada, batata sauté, batata gratinada, batata em camadas, batata assada, bolinho de batata, pão de batata... e ... água na boca. Adoro batata.
Comecei a ver as possibilidades de aplicar aquele universo de saber que me invadia. E comecei a ver tudo sob a ótica da batata.
Penso, logo existo. Uma batata não pensa, logo uma batata não existe. O que há de errado nesse raciocínio, ele parece tão lógico! - me disse certa vez um colega de faculdade.
Na verdade, mesmo que a premissa seja verdadeira, a célebre inferência de Descartes, a conclusão está equivocada, pois se A então B, implica que se não-B então não-A,
mas não implica que que se não-A então não-B. Ou seja, existe certa lógica numa batata - concluía eu agora.
Um coco, ora, o que seria um coco, senão uma batata mais redondo, com o interior oco e cheio de líquido e com uma casca bem mais dura. De certa forma, um coco é uma
batata.
E sobre a arte de descascar uma batata, não teria ela relação com a arte de resolver problemas difíceis, de retirar toda hipocrisia que reveste o ser humano
e revelar seu carboidrato, seu nutriente, sua alma? Plantar uma batata,afinal, não é tão diferente de plantar o conhecimento ou mesmo o amor. Todo eles exigem tempo, paciência, repeito, dedicação. Quando um pé de batata germina, germina um mundo. Milhares de seres visíveis e invisíveis habitam um pé de batata. Quantas histórias secretas lá ocorrem, ninguém saberia dizer.
A batata é uma raiz e fica escondida. O resto da planta é todo um disfarce. A raiz da batata é a raiz do problema, é a raiz do conhecimento e é procurando a raiz que acha a peça fundamental de tudo.
O tempo não caleja o espírito e o torna mais rico em saber como o fogo transforma o sabor de uma simples, aliás, até da mais simples batata?
Eu lia e relia o livro e passava a ver batatas, montes de batatas, por todos os lados.
Quantas batatas eu vi nas nuvens?
E
olha que este livro, tão específico e inusitado, de nada me servia,
mas no fim me serviu, mostrando que a leitura é a atividade mais nobre. Ler um livro sempre serve para alguma coisa.
Ele, o livro, me fez ficar meio-maluco, meio-sábio, mas me fez o grande bem de fazer não ver o tempo passar. Não senti dor nem aflição.
Ele, o livro, me fez ficar meio-maluco, meio-sábio, mas me fez o grande bem de fazer não ver o tempo passar. Não senti dor nem aflição.
E o resgate chegou sem eu percebesse passar o tempo das buscas.
Fui salvo e abri um casa especializada em batatas.
Hoje eu sou o empresário da batata.
Se me perguntassem assim - se você fosse ficar o resto da vida perdido numa ilha e tivesse o direito de escolher um livro, qual seria sua escolha?
Seria o ABC da Batata!
Adorei, Benno!
ResponderExcluirNossa, enquanto ia lendo, veio Machado de Assis ("ao vencedor as batatas") ; veio Robinson Crusoe (em meio aos coqueirais inúteis) ; até Camões que lutou com as ondas do oceano para salvar sua obra andou por aqui por perto ; por fim, chegou Robert Redford e seu incrível último filme de náufrago. Que filme! Não me lembro do título, prometo voltar para trazê-lo.
Mas o que me cativa mesmo no seu texto é esse humor meio cínico que fica embutido na conclusão da sua história.
E o ex náufrago abre um restaurante, embora meio louco, meio sábio. Embora? Com certeza, por isso mesmo [risos].
Que livro eu levaria?
Nenhum. Provavelmente, eu iria imitar José de Anchieta e escreveria poemas na areia da praia só para ver as ondas chegarem, levando meus pobres versinhos que ninguém iria ler mesmo.
Interessante, mas no filme A Noite do Iguana, tem um velhinho que não se lembra do último verso do seu último poema...acho que é isso. Quando ficamos a sós na nossa ilha, só queremos não ser encontrados e que a humanidade nos esqueça para sempre.
Pessimismo? Existencialismo?
Ahhh, temos que nos livrar dos "ismos".
Obrigada, amigo! Você me obrigou a pensar [hahahaha] [e a rir de mim mesma]. Beijos para ti também!
Cumprindo a promessa:
ResponderExcluirO filme está aqui do lado. Chama-se "Até o Fim", foi indicado ao Oscar e seu único personagem é o fascinante Redford. Sabe, eu gosto dele porque num momento em que um De Niro e Al Pacino se acomodam e só fazem filmes comerciais, esse cara enfrenta as limitações do mercado e da sua própria idade e nos presenteia com essa obra-prima. Ah, tá aqui também, ganhou o Prêmio de Melhor Ator pelo círculo de críticos em Nova York, 2013. Pois é, seu bom e velho parceiro, Paul Newman partiu, mas Redford resiste e nos dá exemplo.
E Aracy de Almeida com as "batatinhas", hein? Mas essa eu não posso contar em público, tem criança na platéia, hahaha.
Amigo, beijão no coração!!!
[ legal Benno. livros são ótimas cias]
ResponderExcluirabç
Pensando bem, investir na produção de batata , é um bom investimento. Batata, seja qual for a forma a ser preparada, sempre é bem aceita. Adoro batata frita rsrsrs!
ResponderExcluirLivros sempre é uma boa companhia, não importa onde esteja ele sempre nos ensina muito...
Um beijo Benno!
Ótimo fim de semana!
Passei pra ver mais novidades.
ResponderExcluirótima semana Benno!
Beijos!
Tem postagem!
Estarei fazendo uma pausa no blog sem previsão para a próxima postagem.
ResponderExcluirObrigada por ter trilhado comigo nesse ano de 2014, desejo que no Novo Ano possamos estar juntos novamente.
Desde já te desejo um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de alegrias e coroado de realizações.
Beijos e um punhado de sorrisos!
Feliz Natal! Feliz 2015!
E 2015 chegou e não o brindamos aqui, mas ainda está em tempo, não é mesmo?
ResponderExcluirAmigo, sucesso, paz interior, criatividade e tudo, tudo de legal para você!!!
[estou fugindo das batatas, não posso engordar]
Não fique desestimulado, Benno. Você tem um talento muito próprio e particular para nos transmitir coisas do universo poético que pouca gente tem. Isso que está acontecendo é só uma fase, vai passar.
ResponderExcluirEngordaste um pouquinho? Mas deves estar bem atraente, você é bonito de qualquer jeito, [risos].
Mil beijinhos...