terça-feira, 26 de janeiro de 2010

a beleza mórbida
deste gélido teu olhar
detalhe sórdido
que adivinho em teu esgar
procurei uma maneira
de tua alma perscrutar
e alguma poesia
enfim nela escutar
mas em teu coração
nada havia
além de densa escuridão
teu destino e tua sina
é viver na solidão
e viver sem mim
é o teu triste fim

Ora, nem sei porque escrevo se escrever é apenas uma parte de mim, já que as palavras são minhas tanto verbos quanto substantivos, esta tão triste e pequena metonímia é bem tola e despropositada sina, bem menor que eu mesmo. Qual a razão de fazer algo menor do eu, eu que já tão pequeno sou? Melhor seria apenas ser, coisa bem mais completa e bastante, ser sem me ultrapassar nem ficar aquém de mim. Esta parte que se desprende de mim, a palavra proferida ou escrita, é sempre uma parte menor, nem mesmo a melhor, do meu pensar, e por isso proveito e aprovação de todos menos meu, pois a alguém certamente acrescenta e avulta mas que a mim só subtrai e avilta.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A CARTA

A leitora de Vermeer

Aflita, espero tua carta, sentindo pulsar dentro de mim uma parte de teu ser que deixastes em mim. A distância fica próxima, assim que a recebo e toco no envelope que tocastes ainda outro dia. E sinto, ao mero toque, teus dedos, e no aroma da carta, teu perfume. Nas letras vislumbro teu rosto, na superfície do envelope, teus olhos.
Chego à janela para enxergar melhor tuas letras, ler tuas juras de saudades e de amor. Não importa que o que dizes na carta não faça sentido, ou seja, apenas a repetição do que os amantes se disseram ao longo dos séculos, pois é pleno de sentido para mim. Nas palavras ali rabiscadas, poucas e parcas, vejo teu coração e palpita o meu em um mesmo compasso. E te vejo inteiro e é como se aqui ainda estivesse. Eis aí o mistério das cartas de amor: escritas num código indecifrável para os que não amam, elas conseguem traduzir os sentimentos mais intraduzíveis. Aproximam, mesmo que tudo pareça distante.
É um desafio aos doutos essa comunicação quase sem palavras que traz em si os olhos, a carne, o desejo, o cheiro, e todas essas coisas inexplicáveis que fazem dois seres se amarem.
Meus olhos perdidos no infinito das entrelinhas te fitam e busco nas partes em branco do papel, nas entretintas, nas entreletras, nas entrepáginas, no ar que a dobradura da carta guardava em seu ventre, nos pós e nos entrepós, um vestígio teu ou qualquer coisa que me faça sentir mais próxima de ti e ter certeza que ainda existes e que não fostes só um sonho bom. Quem dera ter aqui um microscópio para poder observar as tuas células, uma lupa para ler tuas impressões digitais ou mesmo ser uma quiromante para ler as linhas que secretamente escondes em tuas palmas de mão. A carta está toda cheia de ti. Abraço-a ao peito, a beijo e me iludo, imaginando um teu abraço, um teu beijo. Mas não é só ilusão, pois bem sabes que agora a abraço e beijo e me sinto tão perto. Tola, tola eu sou, mas que importa? Só a quem ama é permissível ser tolo. Só quem ama é capaz de compreender a tolice de quem ama. Aos que estão cheios de ódio, essa linguagem do amor parece sandice.
Quando voltas? Ainda não sabes ao certo, mas voltas e é isso que importa. Não importa quanto tempo demoras, será sempre igual à eternidade, pois toda espera é eterna. Enquanto te espero, acalento em meu seio tuas cartas e te trago junto ao peito dessa forma.
Por vezes, como tola, as releio, apesar de já declamá-las de cór, pois mais verdadeiras as palavras quando expressas por tua caligrafia.
A cada leitura descubro encantada outro significado maior que me passara despercebido nas leituras anteriores.
Apaixonei-me pelas tuas cartas e se junta a essa à paixão por ti outra paixão de mesma intensidade. Quando junto essas loucas paixões, elas não se somam, mas se multiplicam e se elevam uma à potência da outra.
Ao terminar a leitura dos teus desejos, a leitura da tua falta, a leitura dos teus carinhos, já fico na espera da próxima ou, então, enfim, da tua volta.