domingo, 27 de setembro de 2009

Nasceu no bosque uma pequena flor. Pétalas singelas, cores suaves como nenhum pintor jamais seria capaz de combinar, em perfeita harmonia com paisagem que lhe cerca. Escondida sob as gramíneas e distante dos olhares, dela ninguém se dá conta, pois germinou longe do caminho dos homens. Mas ela, por sua vez, também não se dá conta de quem vai pela estrada. Ela não precisa de olhares. Ela se basta. Lhe basta o simples amor de uma errante abelha que atrevida roube seu néctar e leve seu pólen a outras paragens. Talvez se vá em breve, pois uma flor dura pouco, sem que jamais tenha sido vista. Mas, que lhe importa ter sido esquecida?

Assim é também o destino do verso que nunca foi publicado. Nasceu na alma do poeta apaixonado para traduzir seu sentimento único e morreu em seu esquecimento. Parece triste, mas na verdade o verso, quando iluminado pela verdade do sentimento, basta em si por sua luz, assim como a flor que desabrocha isolada dos olhares e desaparece sob as folhas secas do campo.

Os olhares são apenas intrusos.

Benno Assmann

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Lia e as Musas

menina lendo de Berthe Morisot -(1841- 1895)


LIA



Lia não vivia, mas sonhava que vivia somente quando lia. Lia contos, lia a mão, lia romances de montão. Lia lia. Lia a não mais poder e tinha o poder de assim viver a vida que não vivia. E, quando lia, Lia sonhava ser rainha, estrela, puta ou guerrilheira, qualquer coisa que não fosse de verdade e não tinha a sua idade, mas a idade do sonho em que ardia. Lia veio, Lia foi, não disse a que veio, nem para aonde foi. Passou pela vida sem ser, mas foi tudo o que queria.



Benno Assmann


As Musas

As musas são personagens da mitologia grega, e tem sua origem nos poemas homéricos Ilíada e Odisséia. Elas cantavam para os Deuses e faziam parte do séquito de Apolo, o Deus das Artes. As musas são filhas de Zeus e de Mnemosyne, referidas por HESÍODO com as seguintes mágicas e mistérios:


Clio, a musa mágica da História; Euterpe, a musa musical; Talia, a musa da poética cômica; Melpômene, a musa da poética trágica; Terpsícore, a musa dançante e cantante; Erato, a musa da poesia amorosa; Polímnia, a musa da oratória e da poesia sacra; Urânia, a musa dos seres celestes. Calíope, a musa da poesia épica e eloqüente. Outras musas eram adoradas e inspiravam outros poetas, como a popular Melete, para meditar, Menme, para lembrar, Acide, para cantar e compor músicas, sendo o popular herói artístico e lendário Orfeu filho de uma delas.

O que ficou de importante para nós deste passado distante, porém ainda influente, é sua ligação direta com as artes e as ciências, especialmente a poesia. Na realidade a palavra perdeu seu sentido mitológico e hoje é usado na acepção de inspiração. A poesia gira em torno da inspiração, portanto, gira em torno de musas. As musas são seres diáfanos e ambíguos. Não se sabe se amam ou não o poeta que inspiram. Pois o poeta, falando de todos sentimentos, ora a ela se refere como traidora ou como ser lânguido desfalecido em seus braços, capaz de romper o coração do poeta ou fazer revivê-lo, mistura de morte e ressurreição, paixão e desespero, vida e morte.


No prólogo da Teogonia de Hesiodo, A Origem dos Deuses, marcado pela ambigüidade do mito, as musas cantam: "sabemos dizer coisas enganosas, semelhantes à realidade, mas sabemos, também, quando queremos, dizer coisas verídicas". As Musas são amigas da verdade, mas também da mentira, assim como a poesia. Nas palavras de Pessoa, “ o poeta é um fingidor” que “finge que é dor a dor que deveras sente”. Muitas vezes o amor, a paixão, a musa que inspira, são falsas, mas ainda assim inspiram. O poeta canta um amor imginado ou verdadeiro e sua musa existe ou é só imaginação.

O que cabe ao poeta não é dizer verdades, mas imitar as verdades e despertar sentimentos com estas verdades, não importando se os sentimentos doem na alma do poeta, mas que doam na alma do leitor. O poeta faz o leitor lembrar dos amores e sentimentos que teve, ou faz incandescer as emoções que em sua alma já ardiam. Hume já disse ser impossível mentir. Tudo é fruto da experiência e o amor que a poesia mente, quando mente, é inspirado em um amor havido e guardado na lembrança do poeta e dos seus leitores. Nem os seres mais estranhos criados pela imaginação são inteiramente mentirosos, mas recombinações de realidades. Assim são as Hidras e Quimeras e todos os monstros, ou deuses que a imaginação criou.


Eu, como poeta sem sê-lo, preciso me dirigir a alguém e este alguém tem que ser uma musa. Bem bonitinha, de preferência. Beleza do coração. Beleza da razão. Beleza, qualquer beleza. Quando estou falando de olhos, ou de madeixas, ou do perfume, é da musa que falo. E se falo de outra coisa que não a musa, é para musa que falo. Só a musa é poesia. Eu tenho uma musa e que poeta não tem uma? Minha musa, sabedora de que é minha musa, há de sentir o coração palpitar ao ler este meu ensaio sobre as musas. Vai se sentir nas nuvens como eu me sinto. Nossos corações distantes vão se encontrar lá, naquele espaço etéreo e inalcançável que a poesia criou para este estado idílico.


As musas sabem dizer a Alétheia (verdade) e a Ápate (engano) que se assemelham, confundindo-se, mesmo, uma com a outra. Muitos poetas se referem ao enigmático olhar da musa, o misterioso semblante, se perguntam quais seus mais recônditos pensamentos e o mais poético é imaginar respostas fantasiosas que se afastam dos reais e indevassáveis pensamentos. Ser poeta não é profissão, mas estado de espírito. Não se é poeta, mas se está poeta. A poesia é um encantamento provisório que nos enfeitiça. Muitas vezes fui curado deste vírus que nos contagia e nos poros respiram palavras. Mas a musa é sempre centro da poesia. Não há poeta sem musa. A musa, dizem uns, é qualquer coisa que inspira o poeta. Pode ser o Sol ou a Lua, o mar ou os rios, as flores ou as árvores. Mas não concordo com esta versão. A musa é alguma entidade sobrenatural, ou terrena. Muitos pensaram que a musa se dissolveria ao contato físico, qual um éter.


Mas toda esta teoria se desfaz e se perde ao simples olhar da musa. Quando estou diante da musa, restam ela, eu, ela de novo e a poesia.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O poeta e o romancista

Eram dois amigos. Conheceram-se ainda infantes. Um sonhava voar no mundo da poesia, o outro, caminhar de pés descalços o mundo dos romances.

O poeta tinha sonhos de ser famoso, reconhecido pela crítica e pelo público, enfim, ser bem sucedido. O romancista não se preocupava com isso. Queria escrever seus pensares, colocar o seu viver, sua experiência, suas sensações. Não se preocupava muito com o que diziam.

Eles eram amigos, tinham obejtivos semelhantes, mas eram de fato opostos. Não que a oposição impedisse de serem amigos, mas, ao par da mútua admiração que se tinham, faziam questão de criticar a visão futura de seus trabalhos. O poeta dizia ao romancista que ele devia escrever alguma coisa mais do agrado dos leitores e o romancista dizia ao poeta que ele deveria expressar tudo o que desejava doesse a quem doesse. A arte literária não pode medir palavras, acrescentava o romancista.

O poeta queria escrever o que as pessoas desejam, queria atender o anseio dos seus leitores, realizar seus sonhos, ser o gênio da garrafa e satisfazer seu anseios. Era feliz quando conseguia. Mas se sentia um fracassado ante a menor crítica. Vagava ao sabor dos ventos, seus escritos singravam pelos mares alheios, errando sem direção por caminhos desconhecidos.

Jamais conseguiu ser ele mesmo. O romancista, mais feliz, desejava apenas escrever seu próprio livro. Ficava insatisfeito também, mas apenas quando o que escrevia não correspondia aos seus anseios e não o contentava. Ficava até mais feliz quando o criticavam, sentia que sua escrita tinha força e isso fazia com quem lesse discordar. A mente se ilumina e reflete sobre si mesma quando se vê frente ao desafio. A mente adormece quando tem seus anseios atendidos.

O poeta ficou famoso. Seus versos vendiam, mas o poema era cada vez menos do poeta e mais dos leitores.

O romancista sofreu críticas pesadas, discordavam de seu métodos, o público ficava perplexo e chocado com seus romances. A fama do poeta foi efêmera. Começou a ficar repetitivo. As pessoas se cansaram dele rapidamente.

O poeta foi ficando triste, de extrovetido que era, passou a ficar ensimesmado e cabisbaixo, pois não conseguia mais atender os anseios do público nem escrever uma coisa original em que revelasse a sua própria alma.

Sua poesia foi virando coisa comum, feita de lugares comuns. O romancista, sem jamais conspurcar sua obra em prol da fama e do sucesso , foi enfim reconhecido. Os leitores, em geral, são maria-vai-com-as-outras, e só sabem avaliar se o que lêem está na moda ou não. Mas sempre acaba aparecendo um bom leitor, que presta muita
atenção ao que se diz. Que sabe reconhecer no passado, que consegue adivinhar o futuro.

O leitor que dá a chance ao escritor de ser ele mesmo e sabe reconhecer a originalidade. E o renomado crítico era um desses leitores. Viu que o romancista escrevera muita coisa especial. Agora seria o seu momento. O romancista, por sua vez, não se deixou iludir por este falso conceito : o sucesso. E esperou alguém reconhecer o que ele mesmo via em sua obra. O sucesso, tal como se propala por aí, não existe, ele bem o sabia. Nem o fracasso. Eles são duas mentiras, e faz bem o criador que não dá bola para eles.

O verdadeiro sucesso é escrever o que se deseja escrever e não o que os outros desejavam que se escrevesse. A vida é muito curta para se ser apenas uma marionete. Para ser de fato é preciso esquecer esses dois vilões que amaldiçoam as artes e viver sua própria vida.


Benno Assmann