Era já noite avançada e eu dormia a sono solto. Despertei ouvindo um ruído, cacos de vidro partindo, estilhaços, rangidos, um misto de tudo isso e ainda mais. Depois, não ouvi mais nada, só o silêncio da noite. O silêncio da noite é como um sussurro, que não diz nada, mas diz tão profundamente que assusta.
Foi em meio a este silêncio que se seguiu ao ruído, que a coisa, um vulto obscuro e tenebroso, se aproximou de mim . Não sabia se era uma sensação ou alguma outra coisa. Se era real ou imaginário. Só sei que estava ali, se aproximou e me tomou e eu passei a ser dois ao invés de apenas um. Senti que era uma coisa terrível que vinha de algum lugar tenebroso e o qual iria conviver por muito tempo. Era alguma coisa que, perdida e sem corpo, procurou um para compartilhar e achou o meu.
Agora, eu não sou apenas eu, mas sou dois. E este outro com que compartilhava tudo, digo até que contra a minha vontade, era mais forte do que eu.
Pensei em me matar, mas a coisa me tomava e dizia - fique, tenho outros planos para nós, mas não era bem assim que ela dizia, pois dizia algo assim como se fosse um sussurro, sem palavras distinguíveis, como tentáculos que nos apertam a garganta e nos fazem sufocar, mas que eram tão convincentes que não restava outra senão atender sua ordem. Ordem! Comando! Sim, era assim que a coisa comandava a mim e a meu corpo. E entendia que não podia haver mais ninguém em minha vida.
A partir deste dia fui eliminando as pessoas que faziam parte da minha vida, pois agora minha vida era ser o veículo em que a coisa realizaria seus propósitos, desculpa se insisto em chamá-la de coisa, mas não sei mais do que chamar. Ela não se apresentou, só possui meu ser e pronto.
Naquela mesma noite, Sueli, minha namorada, vinha me visitar. Era o dia da semana em que nos encontrávamos. Namorada não é bem o termo, pois só nos encontrávamos para ter sexo. Ela era casada, mas o marido havia arranjado uma amante e acabaram fazendo aquele acordo tácito em que cada um podia procurar satisfação fora do casamento. Era meu dia favorito da semana, pois ela era linda e sensual. Seu cheiro me inebriava. Não sei como o louco do marido a deixava para mim. Talvez pensasse assim apenas por não conhecer a outra.
Bom, ela veio esta noite vestida para matar. Se fosse eu sozinho a estar dentro de mim, eu a teria agarrado ali mesmo e a amado como todos meus poros, suor, coração e lágrimas, teria fundido as nossas carnes numa erupção ardente de brasas.
Mas a coisa não me deixou reagir do jeito que eu costumava, como o ardente amante que eu sou. A coisa começou me dizendo - você precisa se livrar dela. Somos só eu e você agora. Não precisamos e ninguém para nos atrapalhar. E aí eu respondia para a coisa - o que quer dizer com se livrar dela? - Mate-a, estragule-a, sufoque-a. Deixe-a sem ar e sem vida. Na verdade ele nada me dizia, mas eu ia traduzindo, em total sintonia, o que ele me transmitia telepaticamente.
Mas fazer isso como ? Eu nunca fiz isso, nem sequer cogitei matar alguém, acha que é assim, que basta dizer mate e a pessoa já sabe matar? Mas a coisa, ao invés de responder me deixou claro, telepaticamente, indiscutivelmente o que era para eu fazer. E todo o método frio e desumano de matar alguém me surgiu pronto na mente, como se fosse o resultado de anos de reflexão, mas tudo se deu em apenas segundos.
Sem pensar comecei a preparar tudo. Ela estava deitada, esperando meus carinhos. Eu começava sempre por um beijo demorado. Ela gostava de sentir minha língua e me perguntar qual era o sabor que eu sentia.
A coisa me fez entender de forma diferente o que ela queria com aquela pergunta. Não sei se era isso, acho que não, sempre pensei que ela queria saber se estava saborosa, cheirosa, mas a Coisa me induziu a pensar que, talvez, eu pudesse sentir o gosto de outro beijo. Me subiu uma raiva e a sufoquei, sem pensar, com o travesseiro. Senti ela perdendo as forças. Aquela vadia. Quando dei por mim, vi que quem dizia aquilo era a Coisa e não eu. Por um momento , ela assumira o total comando, tempo o suficiente para que Sueli tivesse morrido asfixiada. Tive que destruir as provas. A coisa foi me dizendo o que fazer. Na verdade, a coisa não dizia nada para mim. Iam surgindo os comandos na cabeça, sem que ninguém precisasse dizer nada. Realmente, é uma coisa difícil de explicar, tenho certeza que ninguém vai entender porque fiz o que fiz. Não foi por escolha, mas por que eu tinha que fazer, eu não podia contradizer aquilo que me invadiu no silêncio da noite, para me fazer de instrumento dos seus desígnios. Como eu dizia, eu cortei o corpo em pedaços e os dissolvi em ácido. Ácido, que ácido? O ácido apareceu lá. Estava no fundo do porão. Não sei porque algum dia eu teria precisado de ácido sulfúrico e clorídrico, mas meu subconsciente havia pedido e eu atendi sem saber o porque. Era como me a coisa não apenas tivesse tomado a mim, mas ao meu passado, à minha história. Era se ela possuísse a minha identidade. Mas, eu juro. Não era eu que estava ali, era apenas a Coisa exercendo sua tirania sobre mim.
Da mesma foram todos os outros, os amigos, os parentes, fui convidando um por um para ir lá em casa e os fui eliminando até não sobrar mais ninguém. Aí a coisa disse para eu seguir em frente com a execução dos seus planos.Nunca tive consciência do que ela pretendia e até hoje não sei. Ela sempre se recusou a me explicar seus planos.
Eu era apenas uma peça no seu tabuleiro de xadrez. Não tinha consideração por mim e apenas usava o meu corpo, pois ela não possuia um que fosse seu. Quer dizer, meu corpo era seu, por assim dizer, mas eu ainda existia ali, de uma certa forma. Eu era como um ser mantido vivo apenas para ser consumido. Acho que se não houvesse mais eu dentro de mim, meu corpo iria junto e é por isso que ela me mantinha vivo, como que respirando por máquinas e mantendo as funções vitais apenas para que meu corpo não morresse.
Sei que parece absurdo, mas eu garanto ser verdade. Há muita coisa além da ciência e da realidade. Além disso, há o mistério. Quem é que poderia viver sem ele?
Depois de ter eliminado uma por uma as pessoas que poderiam interferir, me deixando só neste mundo, a Coisa colocou seu plano em ação. Qual ele seja, não sei. Ela nunca me contou. Tentem entender vocês, pois eu não consigo compreender.
Primeiro, ela me fez ir ao cemitério e, diariamente, comecei a roubar os corpos dos túmulos.
Nossa amada Leninha, descanse em paz. Descanse eternamente, pai. Passant, ne pleure pas ma mort, Si je vivais tu serais mort.. Passei a colecionar mentalmente epitáfios. Acho que era para distrair a mente do horror que eu fazia. É que nem por um momento deixei de ter consciência que aquilo era errado, que não devia se desrespeitar os mortos, que não se devia mexer com as coisas do além. Me perdoem os familiares e as almas dos que violei o túmulo. Eu não tinha alternativa.
Acho que foram centenas. E a Coisa me fazia acumular aqueles restos mortais no porão. Cada um em uma caixa e eu tinha que escrever o nome do falecido na caixa.
Depois, foram as velas, uma para cada corpo, uma faca de prata, um serrote, um martelo, uma foice, uma picarta, algemas e outros itens de tortura e macabros. E a cada novo item, ia se formando aquele ritual macabro e satânico. Não consigo compreender o que ele queria. Acho que queria formar uma legião se zumbis, ou sacrificar ao diabo ou ao vampiro as almas daqueles mortos.
Enfim, o item que faltava. Uma criança, um inocente. O sangue de um inocente tinha que ser derramado, não sei bem com que propósito, era, provalmente, parte essencial do ritual, para que seus desejos lúgubres fossem atendidos.
Não sei e nunca vou descobrir para que tudo aquilo, pois vocês chegaram bem a tempo de evitar a catástrofe a hecatombe. Quando eu estava com o machado pronto para decapitar aquela pobre crinaça, vocês chegaram e impediram que a Coisa realizasse seu ritual. Vinham me seguindo desde que deram pelos primeiro túmulos violados. Me surpreenderam justamente quando eu iria iniciar o ritual dos mortos.
Não acreditaram em mim, não acreditaram que havia realmente a Coisa. Achavam que eu tinha inventado tudo aquilo para escapar da culpa, para escapar da pena. Claro que não, jamais deixei de me dizer culpado, só queria que atentassem para a Coisa e que a parte maior da culpa recaísse sobre ela.
Sob tortura, acabei confessando o que não era verdade, que fui o responsável consciente pelos meus atos e que a Coisa tinha sido inventada por mim. Isso é que o pior, saber que a Coisa vai continuar solta por aí, tomando o corpo e a vontade de outras pessoas. Dizem que eu menti, mas dizem isso por nunca terem tido a coisa dentro de si. Não tenho motivos para mentir, tanto é que prefiro a morte. Eu exigi que me condenassem a morte, tal o horror que tinha ao pensar que a Coisa, que depois que fui preso me deixou, volte e me tome novamente.
Oh, desgraça, me condenaram a apenas trinta anos de prisão.
Sei que o que fiz é o horrível, mas não fui eu e tenho medo de ter que fazer novamente, pois a Coisa prometeu que volta assim que vocês me soltarem após eu cumprir minha pena. Só de pensar nisso, tenho calafrios. É por isso que resolvi me suicidar e deixar esta carta, me desculpando com as muitas pessoas que prejudiquei.
OBS : Esta carta foi encontrada firmemente segura pelos dedos hirtos e endurecidos do priosioneiro, que usou tolhas e lençóis para formar uma corda e se enforcar.
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