quarta-feira, 11 de junho de 2014


De olhos, espelhos e outras coisas desrelacionadas

Exultei ao ver-te mil vezes multiplicada naquela sala de espelhos. Eras só uma e no entanto eras mil. Só eram dois os meus olhos que, insuficientes para tanto, restaram cegos. Hoje, dois buracos profundos ocupam suas órbitas.

Shakespeare não merece reparo, porém escondeu o fato de que Julieta finalmente descobrira quem era ao ver-se no espelho e não se enxergar. Julieta descobriu também que Romeu era o que nunca antes fora ao também nunca mais vê-lo no espelho. Romeu, por outro lado, apaixonado por si mesmo, viu-se no espelho e esqueceu Julieta. E duas vidas foram salvas (duas almas entretanto se perderam). O que é apenas um corpo e o que são apenas dois corpos sem o fogo da paixão? O espelho pode ter este condão de extinguir certas flamejantes porém temporárias chamas.

Cumpre visitar-se muitas vezes o espelho para que se tenha vergonha na cara. Na casa dos políticos não há espelhos. As casas dos críticos possuem janelas ao invés de espelhos. O espelho do pensador é a janela que dá para rua e a rua e quem passa por ela olha o pensador na janela. Já a janela do artista tem vista para o mundo e se parece com um espelho antigo.
O tempo, no espelho, se dilata, enquanto o espaço se comprime, segundo a teoria da relatividade irrestrita. A música é um espelho auditivo que reflete o som do coração do compositor.

Todos os espelhos da minha casa requerem um bom polimento. Mas eu deixo sempre para amanhã. A ferrugem tomou conta de mim e do meu espelho. A idade é implacável. Só lá dentro de mim ainda sou criança. E dou risada desta minha triste e aventureira figura. Um dom Quixote sem Dulcinéia; Pip! na minha mesa ainda está o bolo de casamento de miss Harvischam.

Chato foi quando eu mirei minha imagem no espelho e não me reconheci. Míopes, eram olhos que não viam. Só me vejo disfarçado, pois as lentes dos óculos me alteram a feição.

Ora, o que é um espelho? Nele a pessoa não vê o que outros vêem quando a vêem. Há uma auto-censura que não o permite. Se houvesse um espelho da alma, quem sabe eu poderia ser melhor do que sou. Ou, quem sabe, pior. Nunca sei por onde vou. Nunca sei que caminhos me levariam. Nunca sei onde quero chegar.  Há sempre um interrogação na estrada.

Meus olhos são o espelho do mundo. Teus olhos nos meus, o paraíso. Meus olhos sem os teus, perdição. O meu olhar quando sozinho, uma imensa solidão. O olho direito tem uma ferida, o esquerdo é míope. Salvam-se neles o azul do céu misturado com o verde do mar, como um beijo fino e longuilineo. Olhos de horizonte e esperança ainda que sofridos. Olhos de serpente, olhos de Pandora. Um olho é solitário e vagueia pelo céu, o outro, cansado, descansa sob um véu... de vidro. Um chora perdidamente apaixonado, enquanto o outro, implacável, condena à pena máxima.

No quintal há um segredo, enterrado, num lugar indeterminado, esquecido ou que eu preferia esquecer. Mas afinal, quem não tem um segredo?

Quisera eu saber seus segredos e entrar dentro deles. Materializar seu sonhos. Fazer mágica em teu corpo e em teus pensamentos.

Abracadabra! Eis-te enfim sob meu domínio.

5 comentários:

  1. Olá, Benno.

    Tudo junto e misturado em seu texto. Concordo com a filosofia do espelho. Aliás, só nos enxergamos completamente através do espelho da alma, mas nem sempre estamos preparados para focá-lo. Com certeza, não gostaríamos da visão nele exposta.

    Dias felizes para você.

    Beijo.

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  2. Tu falas de uma forma inexplicável, Benno, pois não há o que se explicar no universo poético. Graças a Deus, Descartes não conseguiu traçar sua dura teoria nos escorregadios espelhos dos poetas. Entretanto, tremo de medo do Matemático que há em ti![risos]
    Valeu, amigo! Bom fim de semana!

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  3. Gosto muito da sua escrita. Revejo-me muito nela, em alguns dos meus próprios textos.
    Adorei ler.
    BSF:
    Abraço. D

    http://acontarvindodoceu.blogspot.pt

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  4. [e eu faço o que quiser,
    na conveniência da obrigação.

    ...
    se você me chamar eu vou,
    vou em forma de canção]


    beijo

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  5. Olhares e reflexos que se completam ou até se confundem.

    Um ótimo texto.

    beijinhos

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