menina lendo de Berthe Morisot -
(1841- 1895)
LIA
Lia não vivia, mas sonhava que vivia somente quando lia. Lia contos, lia a mão, lia romances de montão. Lia lia. Lia a não mais poder e tinha o poder de assim viver a vida que não vivia. E, quando lia, Lia sonhava ser rainha, estrela, puta ou guerrilheira, qualquer coisa que não fosse de verdade e não tinha a sua idade, mas a idade do sonho em que ardia. Lia veio, Lia foi, não disse a que veio, nem para aonde foi. Passou pela vida sem ser, mas foi tudo o que queria.
Benno Assmann
As Musas
As musas são personagens da mitologia grega, e tem sua origem nos poemas homéricos Ilíada e Odisséia. Elas cantavam para os Deuses e faziam parte do séquito de Apolo, o Deus das Artes. As musas são filhas de Zeus e de Mnemosyne, referidas por HESÍODO com as seguintes mágicas e mistérios:
Clio, a musa mágica da História; Euterpe, a musa musical; Talia, a musa da poética cômica; Melpômene, a musa da poética trágica; Terpsícore, a musa dançante e cantante; Erato, a musa da poesia amorosa; Polímnia, a musa da oratória e da poesia sacra; Urânia, a musa dos seres celestes. Calíope, a musa da poesia épica e eloqüente. Outras musas eram adoradas e inspiravam outros poetas, como a popular Melete, para meditar, Menme, para lembrar, Acide, para cantar e compor músicas, sendo o popular herói artístico e lendário Orfeu filho de uma delas.
O que ficou de importante para nós deste passado distante, porém ainda influente, é sua ligação direta com as artes e as ciências, especialmente a poesia. Na realidade a palavra perdeu seu sentido mitológico e hoje é usado na acepção de inspiração. A poesia gira em torno da inspiração, portanto, gira em torno de musas. As musas são seres diáfanos e ambíguos. Não se sabe se amam ou não o poeta que inspiram. Pois o poeta, falando de todos sentimentos, ora a ela se refere como traidora ou como ser lânguido desfalecido em seus braços, capaz de romper o coração do poeta ou fazer revivê-lo, mistura de morte e ressurreição, paixão e desespero, vida e morte.
No prólogo da Teogonia de Hesiodo, A Origem dos Deuses, marcado pela ambigüidade do mito, as musas cantam: "sabemos dizer coisas enganosas, semelhantes à realidade, mas sabemos, também, quando queremos, dizer coisas verídicas". As Musas são amigas da verdade, mas também da mentira, assim como a poesia. Nas palavras de Pessoa, “ o poeta é um fingidor” que “finge que é dor a dor que deveras sente”. Muitas vezes o amor, a paixão, a musa que inspira, são falsas, mas ainda assim inspiram. O poeta canta um amor imginado ou verdadeiro e sua musa existe ou é só imaginação.
O que cabe ao poeta não é dizer verdades, mas imitar as verdades e despertar sentimentos com estas verdades, não importando se os sentimentos doem na alma do poeta, mas que doam na alma do leitor. O poeta faz o leitor lembrar dos amores e sentimentos que teve, ou faz incandescer as emoções que em sua alma já ardiam. Hume já disse ser impossível mentir. Tudo é fruto da experiência e o amor que a poesia mente, quando mente, é inspirado em um amor havido e guardado na lembrança do poeta e dos seus leitores. Nem os seres mais estranhos criados pela imaginação são inteiramente mentirosos, mas recombinações de realidades. Assim são as Hidras e Quimeras e todos os monstros, ou deuses que a imaginação criou.
Eu, como poeta sem sê-lo, preciso me dirigir a alguém e este alguém tem que ser uma musa. Bem bonitinha, de preferência. Beleza do coração. Beleza da razão. Beleza, qualquer beleza. Quando estou falando de olhos, ou de madeixas, ou do perfume, é da musa que falo. E se falo de outra coisa que não a musa, é para musa que falo. Só a musa é poesia. Eu tenho uma musa e que poeta não tem uma? Minha musa, sabedora de que é minha musa, há de sentir o coração palpitar ao ler este meu ensaio sobre as musas. Vai se sentir nas nuvens como eu me sinto. Nossos corações distantes vão se encontrar lá, naquele espaço etéreo e inalcançável que a poesia criou para este estado idílico.
As musas sabem dizer a Alétheia (verdade) e a Ápate (engano) que se assemelham, confundindo-se, mesmo, uma com a outra. Muitos poetas se referem ao enigmático olhar da musa, o misterioso semblante, se perguntam quais seus mais recônditos pensamentos e o mais poético é imaginar respostas fantasiosas que se afastam dos reais e indevassáveis pensamentos. Ser poeta não é profissão, mas estado de espírito. Não se é poeta, mas se está poeta. A poesia é um encantamento provisório que nos enfeitiça. Muitas vezes fui curado deste vírus que nos contagia e nos poros respiram palavras. Mas a musa é sempre centro da poesia. Não há poeta sem musa. A musa, dizem uns, é qualquer coisa que inspira o poeta. Pode ser o Sol ou a Lua, o mar ou os rios, as flores ou as árvores. Mas não concordo com esta versão. A musa é alguma entidade sobrenatural, ou terrena. Muitos pensaram que a musa se dissolveria ao contato físico, qual um éter.
Mas toda esta teoria se desfaz e se perde ao simples olhar da musa. Quando estou diante da musa, restam ela, eu, ela de novo e a poesia.